Rádio do vovô

Tudo que use o abandono por dentro e por fora

Na janela do trem


Ela cantava Billie Holiday, eu fechava os olhos e sorria. Passarinhos na janela do quarto, palavras apaixonadas e sonhos loucos. Passar algum tempo na Índia, conhecer o Tibete antes que ele se acabe, rodar a Europa, aprender tango em Buenos Aires, ter filhos e uma casa com jardim, onde moraria a poesia e a paz. Suas mãos eram as mais quentes, seu olhar o mais profundo, ela o centro do mundo, eu, o periférico visitante. Foram quatro dias e três noites de um amor cinematográfico. Mas todo filme tem um fim: eu tive que partir e ao estender os braços ela não os agarrou, o tic-tac do relógio martelando minha cabeça, é hora de ir, é hora de ir, meus pés quase presos ao chão, quase presos aos sonhos que sonhamos juntos. Eu tinha o mapa para lugar nenhum, "e para lugar nenhum eu não posso", seus olhos me diziam. Sua boca não me dizia nada. Não falava mais da Europa, da Índia, da gente. Billie Holiday calou-se para sempre. Agora eu estou na janela de um trem, é fim de tarde e a tarde é mansa, bicicletas tristes passam lá fora, não há ninguém ao meu lado e eu quero chorar, mas não consigo. Olho pra frente e pra frente é o futuro. O futuro e suas estações.

Um comentário:

Carlinha disse...

Gostei do texto. O seu "mapa para lugar nenhum" me fez lembrar do meu "anti-mapa rumo ao desconhecido"... Como disse um conhecido meu (citando alguém que não lembro quem): "Certeza é o chão de um imóvel. Prefiro as pernas que me movimentam"... ;)